domingo, 31 de janeiro de 2010

Comida de Muquifo


Eu e mais dois amigos estamos criando um blog saborosamente interessante: Comida de Muquifo. Segue o texto introdutório.

Comida de Muquifo é um blog dedicado a um tipo de culinária muito especial, culturalmente enriquecida e cheia de interpretações apimentadas. Como qualquer boa receita, para entender o propósito desse blog se deve começar pelo significado da principal palavra. No nosso caso: Muquifo. E isso não é fácil! Aurélio, por exemplo, não tem uma definição para muquifo e sim para o sinônimo moquiço. Para você ter uma idéia de como é complicado: a ordem das palavras altera profundamente o que se quer dizer com muquifo. “Comida de Muquifo” é bastante diferente de “Muquifo de Comida” ou, pior ainda, de “Comida no Muquifo” (esta última com duplo significado).
Muquifo, ao pé-da-letra, significa uma casa pequena, simples, humilde, desarrumada, mal conservada e com aparência de velha. Muquifo não é um cortiço, tampouco uma maloca. Eu posso morar numa boa casa e o meu quarto ser considerado um muquifo. Muitas vezes um muquifo é melhor identificado por quem vem de fora do que por quem lá reside.
Para os propósitos desse Blog, Muquifo é um restaurante e não uma casa. Ou melhor: um estabelecimento comercial com pretensão de se tornar um restaurante. Pela etimologia da palavra, o Muquifo seria um pseudo-restaurante, desarrumando, acanhado, humilde etc. Geralmente localizado em um bairro popular e populoso, assim como perto de alguma empresa ou entroncamento com muito movimento de pessoas que buscam algum lugar para se alimentar, principalmente na hora do almoço.
O Muquifo surge quando, Dona Francisca ou Seu Tomázio resolvem incrementar a renda familiar oferecendo na varanda de sua casa, no quintal de sua casa ou dentro de sua própria casa o melhor prato da família: aquela feijoada, o incrível sarapatel, a estupenda maniçoba, a maravilhosa galinha caipira, o enfeitiçado caruru, a nutriente moqueca etc. Esse local (quintal, varanda ou sala de estar) começa a ganhar fama e todos que moram ou trabalham por perto passam a freqüentar.
Além do sabor da comida, outras duas características do Muquifo são a fartura dos pratos e o preço atraente. Dona Francisca e Seu Tomázio cozinham os pratos como se fossem para eles próprios. Por isso, geralmente, o Muquifo ganha fama de comida boa, barata e abundante. Essa fama, que no início ficava no entorno do estabelecimento, com o passar do tempo percorre toda cidade. Não é difícil encontrar no Muquifo, pessoas que atravessaram a cidade só para comprovar se a fama é justa ou não. Certamente a fama é justa e essas pessoas voltam e trazem mais outras pessoas (colegas de trabalho, amigos, familiares etc.), os quais, por sua vez, espalham a notícia e o Muquifo, finalmente, se torna uma unanimidade na cidade.
Nessa publicidade aleatória, de boca-em-boca, fica difícil resistir à seguinte provocação: você ainda não conhece o Bar-do-Chicão? Não sabe o que tá perdendo!
Nesse ponto surge mais uma característica do Muquifo: a improvisação. Muquifo que é Muquifo tem de ser improvisado, não importa se já tem sucesso ou não. Quando o Muquifo deixa de ser improvisado e começa a se sofisticar (organizar), perde a graça e vira um restaurante ordinário. A improvisação do Muquifo está em tudo: o cardápio está escrito na parede; os talheres são de cores variadas; a cerâmica que foi comprada para o piso não foi suficiente e o dono teve que completar com outra, mais barata; as mesas não são uniformes; o pessoal que trabalha é da família; o atendimento é sempre informal e pessoal; não há garantida entre porções dos pratos; o papel higiênico dá prá lixar a parede, que, aliás, não tem reboco; e a conta vem escrita num pedaço de papel (geralmente de um caderno escolar) com os garranchos do proprietário(a). Nos Muquifos mais radicais não há onde estacionar o carro; existem animais (geralmente cachorro, gato, papagaio e/ou criança) debaixo das mesas; o avental que a chefe da cozinha usa é o mesmo que enxuga os pratos; a rua é esburacada e com lama; e o banheiro fica lá no fundo.
Os Muquifos cumprem um papel social muito importante. Além de (bem) alimentar uma enorme parcela da população, geram emprego aos membros da família do proprietário que, sem o Muquifo, não teriam o que fazer; movimentam o bairro com o trânsito de pessoas de outras localidades; movimentam a economia local na compra de produtos de fornecedores e nos subprodutos dos Muquifos – entre eles o pagamento pelo serviço de vigiar o carro. Entretanto, a maior importância dos Muquifos – ao menos para esse Blog – é a preservação e criação de uma cultura culinária própria e extremamente rica.
A partir de uma boa refeição realizada num Muquifo a pessoa passa a ver o seu mundo de outro ângulo; a apreciar sabores, cores e histórias incríveis; a valorar os comportamentos e atitudes não considerados anteriormente; a herdar e a contribuir com o verdadeiro DNA de seu povo. Por isso, nos melhores Muquifos, podemos ver pessoas de todas as classes e origens sociais convivendo e apreciando o mesmo alimento: que é acessível à grande maioria. Muquifo verdadeiro não segrega, inclui. O barato é chegar ao Muquifo e ver ao lado da mesa de um secretário de estado outra mesa com operários de uma obra ao lado. Essa troca, essa miscigenação de gente de origens diferentes reunidas por um só propósito, gera a cultura do Muquifo.
A cultura de um Muquifo está em na história, na sua criação, nos seus personagens diários, na paisagem bucólica, nas lendas em torno do principal prato, no cardápio do dia e no melhor dia para se ir lá, assim como nas receitas secretas que fazem sucessos e nos seus mitos e causos. Conhecer essa cultura, saber onde estão os melhores Muquifos da cidade, como se chega lá, conhecer suas lendas, os melhores pratos e o melhor dia para se visitar é o objetivo desse Blog.

Acesse o Comida de Muquifo em: www.comidademuquifo.blogspot.com

sábado, 16 de janeiro de 2010

O paradoxo do serviço

Reza a lenda que um bom serviço envolve algumas dimensões, tais como: confiabilidade no atendimento; responsabilidade e compromisso com a entrega do resultado; segurança do processo, dos dados e das pessoas; adequação e qualidade das instalações físicas e dos equipamentos; boa aparência e empatia dos atendentes. Todas essas dimensões, nós podemos observar diariamente nos serviços prestados à população.

Capitaneada pela angústia e pela fúria de perder cinco dias, entre telefonemas e filas de espera, tentando solucionar um aparente problema de bloqueio de cartão de crédito de uma rede de lojas de eletrodomésticos, Cleudenice, uma senhora de cinqüenta e tantos anos, mãe de três filhos e avó de dois pirralhos, aos prantos, desabafa:

- Minha filha, essa é a décima vez que eu digo a vocês: eu paguei essa conta! Veja aqui o recibo do banco.

Cleudenice mostra o recibo do caixa do banco à atendente. Esta, uma jovem de uns vinte e poucos anos, bonita, sem filhos, com ensino superior incompleto e estudante de cursinho para concursos, pacientemente, responde:

- Eu sei Senhora. A Senhora já me mostrou. O problema é que a Senhora só poderá utilizar novamente seu cartão quando o nosso sistema reconhecer o pagamento.

- Não acredito nisso! Retruca Cleudenice. Com quantas pessoas vou ter que falar para provar que já paguei a conta? Cleudenice toma fôlego e continua:

- Olha, minha filha: eu já fui ao setor de crediário. Depois fui ao setor de pagamentos atrasados, que me mandaram falar com o gerente “sei-lá-das-quantas”. Ele me disse que era uma questão do departamento financeiro. Fui ao departamento financeiro e falei com um tal Valderli, que me disse que se tratava de inadimplência e que só se resolveria com uma empresa de recuperação de crédito. Pois bem, fui a tal empresa e falei com Silvânia, que me passou para Marisvalda. Marisvalda teve que sair para o almoço e me transferiu para você.

Cleudenice tomou outro fôlego e prosseguiu:

- Só com você, minha filha, eu já estou a mais de meia hora e você ainda não vai resolver o problema que vocês criaram para mim. O que vocês estão fazendo comigo é desumano!

- Não se trata disso senhora. Falou a atendente, com uma voz de filhinha falando para a mamãe.

- Então, se trata de quê minha filha?

- É que nosso sistema tem que reconhecer o pagamento para liberar o serviço para a Senhora.

- Mas, tem mais de 15 dias que eu paguei a conta. Aliás, paguei na data correta! Veja.

Cleudenice tenta mostrar novamente o comprovante de pagamento, quando a atendente repete:

- Não adianta Senhora, só após o sistema acusar o pagamento que liberaremos o seu cartão.

- Olha, minha filha. O dinheiro saiu da minha conta e foi para a de vocês. Não foi?

- Não adianta Senhora, só pós o sistema acusar.

- Isso é um absurdo! Quem vai acusar vocês sou eu! Cleudenice grita, perdendo a paciência e chamando a atenção das outras pessoas que estão sendo atendidas e na fila de espera.

A atendente se assusta com a reação de Cleudenice e chama o gerente de atendimento. O gerente – um rapaz alvo, de braços finos e um bucho saliente – chega ao local e, depois de escutar tudo de novo de Cleudenice, conclui:

- Infelizmente, a Senhora terá que voltar aqui amanhã para regularizar sua situação. Pode ser que, daqui prá lá, na virada de um dia para outro, o sistema atualize seus dados e resolva o problema. Sem isso, não podemos fazer nada pela Senhora. Só aguardar.

Cleudenice, exausta e derrotada, sai da sala de atendimento com seu recibo na mão. O gerente, com olhar galanteador, mira a atendente e comenta:

- Tá vendo como acalmar o cliente e evitar tumulto?

A atendente, sabendo bem o joguinho do setor de atendimento, lançando um charme ao gerente, responde baixinho, só para ele escutar:

- Por isso que você é meu ídolo. Você é foda! Agora vou indo, que meu horário já passou e muito.

Na saída do prédio, a atendente encontra o namorado - um rapaz moreno, forte e tatuado - e sua moto. Sobe na garupa, coloca o capacete e comenta:

- Que dia de merda! Uma coroa me ficou chateando o tempo todo por causa de um pagamento que fez e que não está sendo reconhecido. Deu um escândalo lá na frente de todo mundo. E eu ainda tive que ficar ouvindo as babaquices daquele gerente bundão. Aliás, cadê o seu carro?

- Ainda tá na revisão.

- Putz! O serviço daqueles caras tá cada vez pior. Não sei por que você ainda insiste neles?

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