Foi andando pela Lapa que
encontrei Noel. Ele estava meio bêbado, mas me reconheceu. Andamos conversando,
entrando e saído de botequins até pousar em um de esquina, bem em frente aos
arcos. Sem titubear, ele acendeu seu décimo quinto cigarro desde nosso
esbarrão, pediu uma cerveja e começou a cantar e tocar um sambinha em uma
caixinha de fósforo. Noel é assim: não usa isqueiro. Cerveja vai, cerveja vem.
Falamos de tudo. Noite de lua. Lua bela, grande, que dá para ver de longe.
Passamos um tempão falando da Lua. Como ela combina com tudo e, ao mesmo tempo,
contrasta. Ela revala o que está oculto e, ao mesmo, tempo esconde as cicatrizes
do dia. Mas, com Noel não tem apenas um papo. Têm mil! E naquela noite o papo
só foi de reclamação. Noel está velho. É de detestar o que estão fazendo com a
Lapa. Isso é uma invasão estrangeira! Resmunga Noel. Veja só. Quantos turistas
têm ao redor? Só se houve falar em outras línguas. Noel não tem cerimônia, não
faz salinha, vai direto ao assunto. Essa Lapa está morta! Quero minha Lapa de
volta. A Lapa dos sambistas, das prostitutas e dos vagabundos! Reclama Noel.
Repare, até pichação tem um ar de politicamente correto. Veja essa. Ele pega
minha cabeça e a gira para um talude de uma construção. Lá estava escrito: Não
se vende o que se tem de melhor para dar! Isso é loucura! Isso é loucura! Reclama
mais uma vez Noel. Ninguém dá o que tem de melhor! Como as prostitutas vão dar
o que tem de melhor? Se derem, vão morrer de fome! Não só elas, mas todos os
cafetões também! É todo um sistema de produção que entra em colapso por causa
de uma pichação irresponsável dessas. Noel tem razão, mas a conversa muda de
figura numa velocidade maior que dos transeuntes para lá e para cá. A Lapa está
invadida! E que porra é essa que estamos escutando agora? Noel me pede
silêncio, como se eu é quem estivesse falando. Dá para escutar um ritmo
diferente. Maracatu certamente! É isso... Agora aqui virou uma salada. Qualquer
coisa vem tocar aqui. Indo mais adiante tem um bar que só entra de preto. Um
que só toca rock? Perguntei. É aquela porra mesmo, confirmou Noel. Isso aqui
está uma salada. Ninguém é de ninguém. Aliás, todo mundo é deles. Noel apontou
para os policiais que montavam guarda ao lado do Circo Voador. O que têm eles,
Noel? Não tem nada! É esse o problema, com eles não se tem nada nessa Lapa! A
Lapa está sem graça! Tá todo mundo comportadinho. Veja. Ele gira minha cabeça
novamente, agora em direção à Praça Cardeal. Lá estavam artistas projetando
imagens psicodélicas nas paredes brancas do Arco. Estão pensando que a Lapa é o
Woodstok? Ou será que estão querendo fazer da Lapa uma palco para Jean Michel
Jarre? Cadê o samba? E aquelas meninas ali? O que tem elas Noel? São mais bonitas que as verdadeiras! Dá para se confundir! Ronaldinho que o diga. Noel é assim: mudou de assunto novamente. Pegou a caixinha
e, percebendo que o garçom não lhe dava atenção, cantou: Seu garçom faça o
favor de me trazer depressa, uma boa Brahma que não esteja esquentada, um
salame fatiado com queijo à bessa, um guardanapo e um copo d’água bem gelado...
Bebemos mais algumas e saímos, à luz da Lua – que a Lua é a única de que Noel
não reclamou naquela noite –, à procura da Lapa de Noel.
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
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