segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A Lapa de Noel


Foi andando pela Lapa que encontrei Noel. Ele estava meio bêbado, mas me reconheceu. Andamos conversando, entrando e saído de botequins até pousar em um de esquina, bem em frente aos arcos. Sem titubear, ele acendeu seu décimo quinto cigarro desde nosso esbarrão, pediu uma cerveja e começou a cantar e tocar um sambinha em uma caixinha de fósforo. Noel é assim: não usa isqueiro. Cerveja vai, cerveja vem. Falamos de tudo. Noite de lua. Lua bela, grande, que dá para ver de longe. Passamos um tempão falando da Lua. Como ela combina com tudo e, ao mesmo tempo, contrasta. Ela revala o que está oculto e, ao mesmo, tempo esconde as cicatrizes do dia. Mas, com Noel não tem apenas um papo. Têm mil! E naquela noite o papo só foi de reclamação. Noel está velho. É de detestar o que estão fazendo com a Lapa. Isso é uma invasão estrangeira! Resmunga Noel. Veja só. Quantos turistas têm ao redor? Só se houve falar em outras línguas. Noel não tem cerimônia, não faz salinha, vai direto ao assunto. Essa Lapa está morta! Quero minha Lapa de volta. A Lapa dos sambistas, das prostitutas e dos vagabundos! Reclama Noel. Repare, até pichação tem um ar de politicamente correto. Veja essa. Ele pega minha cabeça e a gira para um talude de uma construção. Lá estava escrito: Não se vende o que se tem de melhor para dar! Isso é loucura! Isso é loucura! Reclama mais uma vez Noel. Ninguém dá o que tem de melhor! Como as prostitutas vão dar o que tem de melhor? Se derem, vão morrer de fome! Não só elas, mas todos os cafetões também! É todo um sistema de produção que entra em colapso por causa de uma pichação irresponsável dessas. Noel tem razão, mas a conversa muda de figura numa velocidade maior que dos transeuntes para lá e para cá. A Lapa está invadida! E que porra é essa que estamos escutando agora? Noel me pede silêncio, como se eu é quem estivesse falando. Dá para escutar um ritmo diferente. Maracatu certamente! É isso... Agora aqui virou uma salada. Qualquer coisa vem tocar aqui. Indo mais adiante tem um bar que só entra de preto. Um que só toca rock? Perguntei. É aquela porra mesmo, confirmou Noel. Isso aqui está uma salada. Ninguém é de ninguém. Aliás, todo mundo é deles. Noel apontou para os policiais que montavam guarda ao lado do Circo Voador. O que têm eles, Noel? Não tem nada! É esse o problema, com eles não se tem nada nessa Lapa! A Lapa está sem graça! Tá todo mundo comportadinho. Veja. Ele gira minha cabeça novamente, agora em direção à Praça Cardeal. Lá estavam artistas projetando imagens psicodélicas nas paredes brancas do Arco. Estão pensando que a Lapa é o Woodstok? Ou será que estão querendo fazer da Lapa uma palco para Jean Michel Jarre? Cadê o samba? E aquelas meninas ali? O que tem elas Noel? São mais bonitas que as verdadeiras! Dá para se confundir! Ronaldinho que o diga. Noel é assim: mudou de assunto novamente. Pegou a caixinha e, percebendo que o garçom não lhe dava atenção, cantou: Seu garçom faça o favor de me trazer depressa, uma boa Brahma que não esteja esquentada, um salame fatiado com queijo à bessa, um guardanapo e um copo d’água bem gelado... Bebemos mais algumas e saímos, à luz da Lua – que a Lua é a única de que Noel não reclamou naquela noite –, à procura da Lapa de Noel.

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