De onde surge
a mentira? Qualquer resposta a essa pergunta terá muita chance de ser,
inevitavelmente, mentirosa. Como provar que a mentira, por exemplo, nasceu com
Eva jurando a Adão que ele foi o primeiro em sua vida? Logo Eva, bonitinha,
fofinha e formosa, como ela se apresentava naqueles primeiros dias da
humanidade. Mulher de carnes fartas, braços largos, seios generosos, lábios
carnudos, bochechas róseas e de um feromônio embriagador! Apesar de Eva ser uma
tentação a qualquer mortal, creio que Adão acreditava em sua estória, pois, mesmo
magricelo e sem graça como ele era, olhando ao redor não se via ameaçado por
outros concorrentes de sua espécie.
Entretanto,
quem disse que eles estavam absolutamente sozinhos naquele paraíso? E a ovelha?
E o jumento? E a macaca? E o orangotango? E a danada da cobra? E as árvores? E
os frutos, raízes e legumes em formatos avantajados? A pansexualidade já
poderia ser um conceito em moda à época. Ou seja, não dá para ter absoluta
certeza de que Eva estava ou não falando a verdade para Adão.
Considerando
que ela não estivesse falando a verdade, o fato é que Adão acreditou. E,
talvez, é justamente no ato de se acreditar em uma estória que surja a mentira.
Pois, se Adão não tivesse acreditado em Eva, a estória de que ele foi o
primeiro na vida dela não passaria de uma tentativa frustrada, de um
jogar-verde-para-colher-maduro que não deu certo. Mentira só é mentira se
alguém acredita que a estória é verdadeira. Uma mentira revelada ou descoberta
passa a ser uma história falsa, sem graça e boba. Nesse sentido, uma estória
para ser mentirosa precisa ser tão plausível a ponto de não haver dúvidas de
que ela seja verdadeira, ou seja, de que ela seja realmente uma história. Essas
são as mentiras e Eva sabia disso.
Talvez, Adão
também soubesse disso e fingiu acreditar em Eva. O que mais ele poderia fazer?
Já estava cansado de comer as ovelhas, as cabras e qualquer outro animal de
porte compatível. Para variar um pouco, já tinha tentado com alguns animais
mais exóticos, mas, não poderia perder a oportunidade de um approach com Eva. Que vale frisar: a
única mulher do pedaço! Por isso, a mais bonita, charmosa e gostosa criatura
que seus olhos já tinham visto naquelas terras onde tudo era possível. Como,
nesse contexto, Adão poderia desmentir Eva? Revelar que ele sabia de seu
passado sórdido? Dizer que conhecia todas as suas experiências pansexuais? Ou,
ainda, contar os detalhes de seu caso com a danada da cobra? Não poderia, não
é? Não poderia colocar em risco um possível relacionamento com Eva. Então...
Pode ser que Adão não seja tão abobalhado assim.
Podemos supor
que Adão sabia de tudo e fingiu acreditar em Eva. Dessa forma, a estória que
Eva contou – de que ela era pura, virgem e inocente quando conheceu Adão –
continua sendo uma mentira ou merece ser rebaixada a outra categoria? Se Adão
realmente sabia de tudo e fingiu acreditar em Eva, não contando para mais
ninguém, cria-se, nesse caso, uma metamentira. A metamentira é uma mentira
construída com base em outra mentira. Ela sobrepõe a mentira original, deixando
o contexto da estória muito mais mentiroso. A metamentira, portanto, é um
fortificador da mentira. Quando há uma metamentira, torna-se muito mais difícil
a mentira ser descoberta ou revelada. Uma vez Adão acreditando em Eva, mesmo
sabendo que a conversa toda era puro papo-furado, Adão e Eva se tornam
parceiros dessa mentira, dessa metamentira.
Porém, ao
criar a metamentira, Adão assume uma posição estratégica e privilegiada no
relacionamento com Eva. Ele tem agora uma carta na manga que pode ser usada a
qualquer hora, de acordo com sua conveniência. A qualquer momento, Adão pode
barganhar algo com Eva, dizendo que vai conversar com a cobra ou que vai
verificar a estória da festa da cenoura que Eva participou com a macaca. Festa
essa que o orangotango aponta como o evento divisor do interesse da macaca pelo
sexo oposto. A vantagem da metamentira fica evidente todo domingo à tarde, em
que Eva e Adão estão deitados de conchinha após o almoço. Adão, como de costume
nesses momentos, sempre dá uma fungada no cangote de Eva, anunciando que a sua
libido já deixa sua parte pontiaguda em riste.
- E ai, minha
fofinha, vamos brincar um pouco?
- Hoje não
Adão, tenha a santa paciência! Esse javali que comemos estava muito gordo e
esse calor tá me deixando com um pouco de dor de cabeça.
Se a libido
de Adão não estiver tão forte assim, ele pode se contentar, deixar que surja
mais uma metamentira para usá-la mais adiante, virar-se para o lado e esperar
que a sua bandeira se recolha. Mas, supondo que ele esteja à flor da pele, ele
pode usar a uma metamentira antiga para reverter a tendência dos
acontecimentos.
- Ah... Dor de cabeça, não é?
- É, Adão.
Você sabe que as mulheres tem disso, né?
- Sei minha
fofinha. Sei sim. Aliás, as macacas também têm disso, né?
- Como assim?
Que macacas?
- Outro dia
eu estava conversando com aquela macaca mais peluda e ela me falou disso
também. Sabe que ela me disse que vocês saiam muito juntas antes de me
conhecer? (Adão, maliciosamente, solta a pista de que ele sabe de tudo e de que
está disposto a jogar merda no ventilador)
- É... O que
mais ela falou? (Eva com ar de curiosa e preocupada com seu passado).
- Não muita
coisa. Lembro-me que ela falou também de uma festa que vocês foram. Uma festa
um pouco light, meio vegetariana e
que só tinha fêmeas.
- Aquela
macaca mentirosa falou sobre essa festa? (Eva já tentando desmentir que tivesse
ido à festa das cenouras com a macaca)
- Falar,
falou não, pois apareceu o escroto do orangotango e levou a macaca para
conversar. Mas, já que você está indisposta, acho que vou dar uma voltinha por
ai. Quem sabe eu não encontro a macaca e ela termina de me contar.
- Vai não, dengo!
Sabe... Esse calor tá até me deixando bem fogosa e a dor de cabeça, acho que já
passou. Vem cá, vem!
Claro que
Adão foi. As mentiras são assim, umas mais cabeludas que as outras, mas todas para
serem acreditadas, senão não seriam mentiras.