quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Precisamos de um Alcibíades?

Tucídides (460 a 395 a.c.) fez um grande favor em fracassar como general e se tornar um extraordinário historiador. Talvez, o primeiro historiador a não utilizar explicações divinas. Sua obra narra a guerra do Peloponeso (431 a 404 a.c.). Com o olhar de quem participou com as mãos sujas de sangue, ele mostra que a importância de compreender eventos do passado está para além do prazer em conhecer narrativas fascinantes e sim em entender a natureza do homem. Esta, independentemente da época, é a mesma.

Um pouco antes da guerra do Peloponeso, uns 450 anos antes de Cristo, os gregos tinham acabado de expulsar os invasores persas. Como ilustração, para quem gosta de filme e para as mulheres, podem assistir os 300 com todos aqueles espartanos com barriga tanquinho. Eram contra os persas que lutavam. Mas, o que importa aqui é que eles não só expulsaram o invasor, como reconquistaram todas as cidades perdidas e ainda se aventuraram nas terras dele. Os estados gregos estavam ficando poderosos e, entre eles, duas potências estavam surgindo: Esparta e Atenas.

Apesar de bem próximas, Atenas e Espartas eram diferentes. Esparta era uma oligarquia e Atenas uma democracia. Esparta era disciplina pura, enquanto Atenas era a terra da liberdade. Esparta tinha exército forte, enquanto Atenas dominava os mares com a sua marinha. Esparta era tradicionalista e fechada em si, Atenas era expansionista e aberta ao novo. O fato é que, ao comando de Péricles (495 – 429 a.c.), Atenas floresceu, enriqueceu e começou a incomodar muito Esparta, que temia que os princípios democráticos e a forma de ver o mundo corrompessem os princípios espartanos e, com isso, acabassem com toda tradição e, no fim do dia, com a oligarquia. Não havia lugar para duas potências tão próximas. Era necessária uma guerra para que uma subjugasse a outra. E ela começa sempre com um subterfúgio.

Não é sobre a guerra em si que quero contar essa história e sim sobre um homem em particular: Alcibíades (450 a 404 a.c.). Alcibíades era sobrinho de Péricles e fora educado em Esparta, apesar de ateniense e extremamente apaixonado por Atenas e seus valores. Mas, naquela época, antes da guerra, era comum meninos irem à Esparta para serem educados. Com a guerra, isso acabou e Alcibíades teve de tomar seu lugar e sua posição em relação à divisão de poderes.

Alcibíades era extremamente bonito. Talvez o homem mais bonito que já existiu. Mais bonito que o próprio Apolo. E sempre foi bonito durante toda sua vida. Um amigo seu, vendo-o em um discurso em Esparta e vendo que ao redor dele estavam outros homens, espartanos, de extrema beleza, não tinha dúvida de que, apesar da perfeição dos corpos espartanos, moldados na disciplina militar e no modo de vida regrado, não chegavam nem perto da beleza de Alcibíades. Conta que, durante uma festa que ele fora convidado e oferecida por um governador de uma das cidades controladas por Atenas, Alcibíades roubou toda prataria do anfitrião. Sendo alertado por este roubou, o anfitrião simplesmente exclamou e perguntou o que eram simples metais se, de fato, Alcibíades já havia roubado o seu coração.

Não só extremamente bonito, ele também era um excelente orador. Muito melhor que seu tio Péricles. Alcibíades enfrentava multidões e, com seu tom adequado e com seu raciocínio rápido, desarticulava os argumentos de absolutamente todos seus adversários, incluindo os de inimigos espartanos e os dos terríveis persas. Durante a guerra, Alcibíades ia de cidade em cidade construindo ou destruindo alianças com as suas palavras e argumentos invencíveis. Alcibíades também era um excelente soldado, comandante, general e, por incrível que pareça, ditador. Seu comando era simplesmente ouvido. Os homens ao seu redor simplesmente eram enfeitiçados por ele e por ele faziam tudo.

Além de tudo isso, Alcibíades era amigo e discípulo de Sócrates (469 a 399 a.c.). Diziam que os dois eram o que havia de pior e melhor no mundo, Sócrates era um homem já maduro no início da guerra. Se vivesse hoje seria considerado um nerd, pois simplesmente parava ao nada, contemplava as coisas e começava a filosofar sobre elas e só saia desse transe quando chegava a uma conclusão. Sócrates lutou junto a Alcibíades, protegeu Alcibíades e foi por ele protegido. Sócrates era feio. Extremamente feio. Mas, era o único que Alcibíades ouvia. Só Sócrates conseguia convencer Alcebíades do contrário. Ninguém mais! Sócrates, como se sabe, foi executado pelos atenienses no final da guerra: a culpa foi ter sido o mentor de Alcibíades e dos jovens atenienses.

No início da guerra, Alcebíades lutou por Atenas, como não poderia ser diferente. Mas, a guerra entrou em um estágio que ninguém iria ganhar ou perder. Para sair dessa situação, Alcibíades, já condecorado diversas vezes por bravura e famoso em todo Peloponeso, convenceu os atenienses de que era necessária uma estratégia completamente diferente, batendo Nícia (470 a 413 a.c.) em um dos mais famosos debates já ocorrido na Assembleia. Era preciso ganhar força extra para vencer seu oponente, os espartanos. A força extra que Alcibíades visara estava na Sicília e se chamava Siracusa. Siracusa era também uma potência. Uma potência neutra quase do tamanho da própria Atenas. Tomar Siracusa tinha algumas vantagens na estratégia de Alcibíades: ganhar força para destruir Esparta e abrir caminho para um território promissor e pouco explorado: a Itália.

Alcibíades não só ganhou o debate contra Nícia, que era extremamente contra essa “loucura”, pois Siracusa era um estado neutro e longe, como empreendeu todo esforço possível e inimaginável para isso. Ele mesmo comprometeu toda fortuna de sua família na construção de embarcações. E assim se realizou. Nunca antes se construiu e se formou uma marinha daquele tamanho. Ao todo 60 mil homens foram, de barco, tomar Siracusa.

Entretanto, como a atração que ele gerava era enorme, também eram enormes o medo e a repulsa que ele originava nos antigos e nos contrários. E nisso, uma enorme profanação foi feita nas estátuas de Atenas no dia da partida da frota e Alcibíades, por mais contraditório que pareça, foi acusado de traidor. O julgamento se deu a sua revelia, pois ele já havia partido para Siracusa com a frota. Ele foi condenado por traição e a sentença foi a morte. Um navio de transporte de prisioneiros foi enviado para aprisiona-lo e retorná-lo à Atenas para ser executado. Em seu lugar, assumiu Nícia o comando da expedição, o mesmo que era contra toda aquele empreendimento.

Alcibíades não se entregou aos seus carrascos. Convenceu os marinheiros do navio de prisioneiro a soltá-lo na Itália. E assim conseguiu fugir a sua morte, decretada à revelia pela oposição. Atenas que era o amor de Alcibíades tinha decretado a sua morte e isso não ficou barato. Alcibíades fez o que não se imaginaria fazer: foi ao inimigo e habilmente se aliou a ele, aos espartanos, para destruir Atenas. A melhor forma para isso, na visão de Alcibíades era destruir o seu próprio empreendimento: vencer os 60 mil homens enviados para capturar Siracusa.

Alcibíades convenceu que era importante para Esparta e, mudando completamente, tornou-se o mais espartano dos espartanos. Quem mais saberia da expedição que o seu mentor? A estratégia de Alcibíades foi criar em Siracusa sua própria capacidade de vencer e, assim se fez. Nícia, que não era razão de motivação para os soldados atenienses fracassou e Atenas sofreu, pela mentalidade e genialidade de Alcibíades, a pior de suas derrotas. Apenas mil homens do 60 mil, conseguiram voltar à Atenas. Terrível desastre!

Alcibíades erra culpado? Era traidor? Ou ele havia agido em função de seu mais puro amor por Atenas? O que se sabe é que ele não parou ali. Para Alcibíades, Atenas deveria ser destruídas para poder florescer novamente. Da mesma maneira como ocorrera na época da invasão dos persas. Alcibíades conseguiu mais uma proeza para completar sua façanha: convenceu o rei de Esparta, Ágis (* a 400 a.c.), a se aliar com o antigo e temível inimigo persa. Para tanto, Alcibíades se comprometeu a pessoalmente ir à Pérsia e fazer o necessário para convencer os persas a se aliarem a Esparta e derrotar Atenas. E assim ele partiu com sua frota à Pérsia.

Mas, o pouco tempo que Alcibíades permaneceu em Esparta foi o suficiente para provocar uma mudança de costume que não agradou em nada os oligarcas. Eles sabiam que Alcibíades era um instrumento para destruir Atenas e nada mais que isso. Era necessário matar Alcibíades após o acordo com os Persas, pois ele e seu fascínio já começavam a imprimir nos espartanos uma admiração preocupante para quem estava no poder. Além de começar a mudar os costumes locais, Alcibíades também fez um estrago ainda maior em Esparta: engravidou a Rainha Timéia (427 a 401 a.c.). Não havia outra opção ao Rei Ágis senão mandar matar Alcibíades, mesmo ele assumindo com a eficiência de nenhum outro espartano o trabalho de diplomata nos confins da Pérsia.

Nessa altura do campeonato, não havia como Alcibíades retroceder, tampouco evitar a união de Esparta e Pérsia contra Atenas. Mas, havia como Alcibíades voltar e defender Atenas contra os inimigos. Quem duvidaria que ele conseguiria fazer isso? Quem, senão o próprio Alcibíades poderia liderar a resistência? Porém, durante um ano Atenas se fez de difícil e não o chamou de volta. Entretanto, percebendo que mesmo o tendo condenado à morte, dependia dele para sobreviver, não teve outra opção senão ceder.

Alcibíades voltou à Atenas e foi recebido como um verdadeiro herói que de fato era. Não pelos que estavam no poder, aqueles que tinham conspirado contra ele e o condenado à morte, mas pelos que faziam parte da marinha e do povo e que com ele havia lutado e se inspiravam. Um dia, em uma festa, um comandante perguntou aos presentes como se conseguiria comandar homens livres. Alcibíades, apesar de bêbado, disse simplesmente: só se comanda homens livres sendo melhor que eles. Apenas por exemplo é que se comanda homens livres. Por natureza, os homens seguem aqueles que querem ser, aqueles que se espelham. E a multidão de marinheiros, recebendo Alcibíades de volta, espelhava-se nele.

O homem que foi condenado à morte, que infligiu à pátria a pior de suas derrotas e que se uniu ao inimigo estava de volta e, mais uma vez, como salvador. Alcibíades sabia que, por Atenas faria tudo e seu discurso, perante os marinheiros, foi o mais emocionante de todos. O senhor da oratória, muitas vezes teve de parar, sustentar-se e tomar fôlego. A emoção o domara. Mas, mesmo emocionado, talvez até por isso, foi ovacionado. Para Alcibíades a batalha seria duas: uma contra os inimigos externos de Atenas (Esparta e a aliada Pérsia) e outra contra os inimigos internos de Atenas. Alcibíades foi extraordinário, sob seu comando a frota ateniense impôs ao inimigo derrotas atrás de derrotas.

Apesar de suas vitórias, o tempo e o dinheiro da Pérsia contou a favor dos espartanos. A incapacidade de continuar financiando a guerra, apesar do poder de persuasão de Alcibíades, favoreceu os inimigos internos de Atenas. Mais uma vez o herói ateniense foi mandado ao exílio e mais uma vez ele fez o que nenhum mortal ousaria fazer. Dessa vez, colocou-se a serviço dos próprios persas e, recebendo apoio e proteção deles, exilou-se. Contrariando a probabilidade, Alcibíades não morreu em uma batalha, mas sim se defendendo bravamente dos ciúmes dos irmãos e amigos raivosos de uma jovem que, como muitas, caiu nos encantamentos de Alcibíades e a ele havia se entregado completamente.

Sem nunca ser derrotado no campo de batalha, Alcibíades morreu passionalmente e, ao morrer, Atenas, sua amada, foi finalmente derrotada por Esparta. Os atenienses traduziam assim o sentimento que tinham por Alcibíades: nós o amamos, nós o odiamos e nós não podemos viver sem ele.

O que faria um Alcibíades nos tempos atuais? Teria espaço uma figura dessa no Brasil e no mundo de hoje? Será que, diante de tanta lama e tanta frustração - que se anunciam a cada telejornal - precisaríamos de um Alcibíades para nos liderar e nos salvar? Ou será que mesmo um Alcibíades se sucumbiria à forma de fazer politica atual, à corrupção generalizada de nossa sociedade e ao total desprezo pelos valores morais e humanos? A resposta eu não sei, mas eu gostaria que a sociedade não dependesse de um único homem ou mulher para encontrar suas soluções. Por isso, acredito tanto na ideia da alternância de poder. Talvez os gaúchos estejam certos ao jamais repetir um só governador, melhor ou pior que esse demonstrasse ser. A democracia, como acreditava Alcibíades, agradecerá.


Fontes: TEMPOS DE GUERRA – Steven Pressfield; The Theach Company – Famous Greeks

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