Sabe o que mais curto em notícias/matérias
publicadas na internet ou intranet das empresas? Os comentários dos leitores. É
muito interessante como as pessoas interpretam, criticam e expõem suas opiniões
aos fatos ou factoides apresentados. Mais interessante ainda é a reação de
outros leitores acerca das opiniões de terceiros. Nisto há os moderados e os
radicais – a favor e contrários. Quem opina a favor, logo recebe uma bordoada
dos contrários. O mesmo ocorre com os contrários, que são escrachados pelos
favoráveis. Há quem muda de opinião ao longo das discussões. E, também há quem
apela para a baixaria. Divirto-me muito com os comentários mais radicais, pois,
não havendo unanimidade, qual o sentido de tamanha agressividade? Além do humor
ao ler os comentários das notícias/matérias, pode-se aprender alguma coisa aqui
e acolá.
Foi lendo os comentários de uma
matéria na intranet que, recentemente, deparei-me com um conceito novo para
mim: duplipensar. A autora do
comentário não explicou o que era o termo, apenas o utilizou em sua
argumentação. Foi o comentário desse primeiro comentário que explicou o
significado e a origem do conceito “duplipensar”. Duplipensar é um conceito
inventado por George Orwell em seu livro 1984. 1984 é uma ficção publicada em
1949 sobre o futuro da humanidade em um regime totalitário e repressivo,
possuindo um dirigente objeto de culto, o Big
Brother. Nesse contexto, o termo duplipensar seria a capacidade de conviver
com duas proposições contraditórias, aceitando ambas como verdadeiras.
Fui ao cinema nesse fim de semana
e pude entender melhor o que seria na prática o duplipensar. Normalmente, como
ocorre em todo início de sessão, as pessoas vão chegando, sentando, fazendo
comentários iniciais, abrindo e fechando bolsas, abrindo latas de
refrigerantes, finalizando chamadas de celular etc. Ou seja, todo início de
sessão de cinema há barulho até que as coisas fiquem calmas e o silêncio
necessário reine durante o filme. Pois bem, sentado na fileira detrás havia um
senhor que não aguentou esperar que todos ficassem quietos e pediu silêncio com
uma impaciência anormal. Notando o impaciente vizinho, imaginei que ele
prezaria pelo silêncio também. Mas, não. Ele pediu silêncio e quando a sala
estava devidamente quieta ele era um dos que produzia sons da mastigação de
pipocas. E haja pipoca! A pipoca desse homem demorou meio filme para terminar.
Ao fim, ele abriu uma lata de refrigerante, ressoando o som por todo ambiente,
que estava em silêncio como ele havia pedido. Depois do filme, voltando para
casa, deparei-me com outro exemplo muito comum de duplipensar. Era um furgão
estacionado na calçada com um cartaz na carroceria: Como estou dirigindo? A
ilusão de que essa pergunta basta é fantástica.
Nas palavras do próprio Orwell,
duplipensar significa:
- Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas;
- Usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido (opressor) era o guardião da Democracia;
- Esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e
- Acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar.
O Brasil é um país onde o povo é acostumado
ao duplipensar. Duplipensam no Brasil com uma maestria que nem Orwell seria
capaz de imaginar. O melhor (ou pior) é que no Brasil não se precisa de um Big Brother, o duplipensar ocorre com
naturalidade, ou como o conceito prega, ocorre ao nível do inconsciente.
Em 2013 foram às ruas aos
milhares protestando contra tudo e contra todos para, no ano seguinte, elegerem
todos os velhos políticos novamente. Aqueles que não foram eleitos, ganharam
cargos públicos dos que foram eleitos, pois os partidos e as coligações são os
mesmos. Qual a lógica das revoltas recentes senão uma expressão de um
duplipensamento coletivo?
Por décadas acusaram políticos
que praticavam a compra de votos. Isso ainda existe e muito. Mas, o que vemos
hoje é uma compra de votos em massa: a industrialização do voto de cabresto.
Não há nada pior para o povo que políticas assistencialistas – como os de bolsas-vale-tudo
– e uma educação de péssima qualidade. A segunda retira do povo sua
emancipação, enquanto a primeira assegura aos mesmos o cabresto sofisticado do
pós-modernismo que impede o pleno exercício da democracia. Vendem-se o medo da
fome, do desemprego, da falta de moradia e a moeda em troca é a ignorância
coletiva. Quem critica esse sistema fez, faz e fará o mesmo. Quem o faz agora é
quem criticou outrora.
Descobre-se esquemas bilionários
de corrupção e até se coloca alguns ladrões na cadeia, mas também se beneficia delatores
com prêmios milionários. Faz sentido? No duplipensamento, sim. Afirma-se em lei
que não se pode contratar empresa corruptora, mas, suaviza-se atitudes morais
para não prejudicar a economia, com a fantasiosa argumentação de que sem essas
empresas haveria recessão. Recessão já há! Quanto aos ladrões, os poucos que
vão para cadeia entram com punhos fechados, em alusão a uma luta ideológica e
de classes. Enquanto isso, consome-se como verdadeiro o velho ditado que os
fins justificam os meios. Só que os fins são privados e os meios são públicos e,
pasmem, aceita-se isso tranquilamente.
Juízes ignoram leis das quais
deveriam ser os principais defensores. Ao serem questionados pela sociedade,
defendem-se corporativamente e dão a impressão de que são intocáveis (deuses) e
impõem aos seus acusadores (reais vítimas) severas penas financeiras e morais.
No duplipensamento do judiciário, o slogan é: faça o que eu digo, mas não faça
o que eu faço. E, por esse slogan, o judiciário vai autopromovendo benefícios,
em um explícito exercício de acumulação de riquezas e benesses a despeito da
realidade dos concidadãos, diferenciando-se cada vez mais desses, ao tempo em
que tenta demonstrar ser feito das mais puras igualdade, imparcialidade e moralidade.
Como o duplipensamento é ter
consciência da veracidade de uma mentira ou o inverso disso, sendo isso tudo
cuidadosamente arquitetado, é comum vê-lo fazer parte do discurso de prefeitos,
governadores, secretários, ministros e empresários ao negarem o óbvio e
declararem o contrário da realidade. É assim ao afirmar que não há crise
energética, mesmo com inúmeros apagões e com sucessivos anos sem crescimento
econômico. É assim ao afirmar a previsão de crescimento do PIB do país a
despeito de todas outras visões que afirmam o não crescimento. É assim ao declarar
que não haverá problemas no fornecimento de água, mesmo passando anos e décadas
sem o planejamento e o investimento corretos que o setor merece. É assim ao afirmar
que a solução da seca no Nordeste é a transposição, mesmo sabendo que isso de nada
irá adiantar. É assim ao ser denunciado por uma reportagem investigativa qualquer
e apontar a culpa nas gestões anteriores, mesmo que a gestão anterior tenha sido
dele mesmo e, com peroba na cara, afirmar que o governo está fazendo todos os
esforços para reparar a situação denunciada. É assim o tempo todo no
duplipensamento.
Das classes sociais mais abastadas
às mais humildes, têm-se exemplos de duplipensamento no Brasil. É algo
generalizado, sem cor ou credo. O guarda que aplica multa se um transeunte
jogar um papel ao chão no centro do Rio é o mesmo que não percebe – ou não quer
perceber – a montanha de lixo que se torna a calçada ao fim do expediente. A
professora que reclama da educação pública e que defende o aumento dos salários
dos professores como forma de melhoria é a mesma que coloca o filho na escola
particular e, com o hipotético aumento, colocaria em outra escola ainda mais cara.
Os defensores das cotas raciais, como política de afirmação, e que denunciam o
racismo velado são os mesmo que estão conseguindo fazer com que classificações
por fenótipos definam o destino de milhares de brasileiros ao tentar ingressar
em uma instituição de ensino ou conseguir um emprego, implementando um sistema
por natureza racista.
Tenho que agradecer à autora do
comentário que li e que me apresentou esse termo “duplipensar”. Nunca antes
havia percebido um termo que traduzisse tão bem o que ocorre com o (ou no)
Brasil. Talvez já existam cursos para ensinar técnicas para duplipensar, tamanha é a naturalidade de nossos principais personagens políticos ou não com as negações
positivadas e as afirmações negativadas. E, mesmo que pegos em contradição,
eles ainda têm a saída maliciosa do “não sabia”. Como ouvi em alguma rádio, o
Brasil é o único lugar onde o ladrão é pego com o dinheiro na cueca e ainda tem
a coragem de dizer: roubei, mas não fui eu!