terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Brasil, um bom lugar para duplipensar



Sabe o que mais curto em notícias/matérias publicadas na internet ou intranet das empresas? Os comentários dos leitores. É muito interessante como as pessoas interpretam, criticam e expõem suas opiniões aos fatos ou factoides apresentados. Mais interessante ainda é a reação de outros leitores acerca das opiniões de terceiros. Nisto há os moderados e os radicais – a favor e contrários. Quem opina a favor, logo recebe uma bordoada dos contrários. O mesmo ocorre com os contrários, que são escrachados pelos favoráveis. Há quem muda de opinião ao longo das discussões. E, também há quem apela para a baixaria. Divirto-me muito com os comentários mais radicais, pois, não havendo unanimidade, qual o sentido de tamanha agressividade? Além do humor ao ler os comentários das notícias/matérias, pode-se aprender alguma coisa aqui e acolá.


Foi lendo os comentários de uma matéria na intranet que, recentemente, deparei-me com um conceito novo para mim: duplipensar. A autora do comentário não explicou o que era o termo, apenas o utilizou em sua argumentação. Foi o comentário desse primeiro comentário que explicou o significado e a origem do conceito “duplipensar”. Duplipensar é um conceito inventado por George Orwell em seu livro 1984. 1984 é uma ficção publicada em 1949 sobre o futuro da humanidade em um regime totalitário e repressivo, possuindo um dirigente objeto de culto, o Big Brother. Nesse contexto, o termo duplipensar seria a capacidade de conviver com duas proposições contraditórias, aceitando ambas como verdadeiras.


Fui ao cinema nesse fim de semana e pude entender melhor o que seria na prática o duplipensar. Normalmente, como ocorre em todo início de sessão, as pessoas vão chegando, sentando, fazendo comentários iniciais, abrindo e fechando bolsas, abrindo latas de refrigerantes, finalizando chamadas de celular etc. Ou seja, todo início de sessão de cinema há barulho até que as coisas fiquem calmas e o silêncio necessário reine durante o filme. Pois bem, sentado na fileira detrás havia um senhor que não aguentou esperar que todos ficassem quietos e pediu silêncio com uma impaciência anormal. Notando o impaciente vizinho, imaginei que ele prezaria pelo silêncio também. Mas, não. Ele pediu silêncio e quando a sala estava devidamente quieta ele era um dos que produzia sons da mastigação de pipocas. E haja pipoca! A pipoca desse homem demorou meio filme para terminar. Ao fim, ele abriu uma lata de refrigerante, ressoando o som por todo ambiente, que estava em silêncio como ele havia pedido. Depois do filme, voltando para casa, deparei-me com outro exemplo muito comum de duplipensar. Era um furgão estacionado na calçada com um cartaz na carroceria: Como estou dirigindo? A ilusão de que essa pergunta basta é fantástica.


Nas palavras do próprio Orwell, duplipensar significa:

  • Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas;
  • Usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido (opressor) era o guardião da Democracia;
  • Esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e
  • Acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar.

O Brasil é um país onde o povo é acostumado ao duplipensar. Duplipensam no Brasil com uma maestria que nem Orwell seria capaz de imaginar. O melhor (ou pior) é que no Brasil não se precisa de um Big Brother, o duplipensar ocorre com naturalidade, ou como o conceito prega, ocorre ao nível do inconsciente.


Em 2013 foram às ruas aos milhares protestando contra tudo e contra todos para, no ano seguinte, elegerem todos os velhos políticos novamente. Aqueles que não foram eleitos, ganharam cargos públicos dos que foram eleitos, pois os partidos e as coligações são os mesmos. Qual a lógica das revoltas recentes senão uma expressão de um duplipensamento coletivo?


Por décadas acusaram políticos que praticavam a compra de votos. Isso ainda existe e muito. Mas, o que vemos hoje é uma compra de votos em massa: a industrialização do voto de cabresto. Não há nada pior para o povo que políticas assistencialistas – como os de bolsas-vale-tudo – e uma educação de péssima qualidade. A segunda retira do povo sua emancipação, enquanto a primeira assegura aos mesmos o cabresto sofisticado do pós-modernismo que impede o pleno exercício da democracia. Vendem-se o medo da fome, do desemprego, da falta de moradia e a moeda em troca é a ignorância coletiva. Quem critica esse sistema fez, faz e fará o mesmo. Quem o faz agora é quem criticou outrora.


Descobre-se esquemas bilionários de corrupção e até se coloca alguns ladrões na cadeia, mas também se beneficia delatores com prêmios milionários. Faz sentido? No duplipensamento, sim. Afirma-se em lei que não se pode contratar empresa corruptora, mas, suaviza-se atitudes morais para não prejudicar a economia, com a fantasiosa argumentação de que sem essas empresas haveria recessão. Recessão já há! Quanto aos ladrões, os poucos que vão para cadeia entram com punhos fechados, em alusão a uma luta ideológica e de classes. Enquanto isso, consome-se como verdadeiro o velho ditado que os fins justificam os meios. Só que os fins são privados e os meios são públicos e, pasmem, aceita-se isso tranquilamente.


Juízes ignoram leis das quais deveriam ser os principais defensores. Ao serem questionados pela sociedade, defendem-se corporativamente e dão a impressão de que são intocáveis (deuses) e impõem aos seus acusadores (reais vítimas) severas penas financeiras e morais. No duplipensamento do judiciário, o slogan é: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. E, por esse slogan, o judiciário vai autopromovendo benefícios, em um explícito exercício de acumulação de riquezas e benesses a despeito da realidade dos concidadãos, diferenciando-se cada vez mais desses, ao tempo em que tenta demonstrar ser feito das mais puras igualdade, imparcialidade e moralidade.


Como o duplipensamento é ter consciência da veracidade de uma mentira ou o inverso disso, sendo isso tudo cuidadosamente arquitetado, é comum vê-lo fazer parte do discurso de prefeitos, governadores, secretários, ministros e empresários ao negarem o óbvio e declararem o contrário da realidade. É assim ao afirmar que não há crise energética, mesmo com inúmeros apagões e com sucessivos anos sem crescimento econômico. É assim ao afirmar a previsão de crescimento do PIB do país a despeito de todas outras visões que afirmam o não crescimento. É assim ao declarar que não haverá problemas no fornecimento de água, mesmo passando anos e décadas sem o planejamento e o investimento corretos que o setor merece. É assim ao afirmar que a solução da seca no Nordeste é a transposição, mesmo sabendo que isso de nada irá adiantar. É assim ao ser denunciado por uma reportagem investigativa qualquer e apontar a culpa nas gestões anteriores, mesmo que a gestão anterior tenha sido dele mesmo e, com peroba na cara, afirmar que o governo está fazendo todos os esforços para reparar a situação denunciada. É assim o tempo todo no duplipensamento.


Das classes sociais mais abastadas às mais humildes, têm-se exemplos de duplipensamento no Brasil. É algo generalizado, sem cor ou credo. O guarda que aplica multa se um transeunte jogar um papel ao chão no centro do Rio é o mesmo que não percebe – ou não quer perceber – a montanha de lixo que se torna a calçada ao fim do expediente. A professora que reclama da educação pública e que defende o aumento dos salários dos professores como forma de melhoria é a mesma que coloca o filho na escola particular e, com o hipotético aumento, colocaria em outra escola ainda mais cara. Os defensores das cotas raciais, como política de afirmação, e que denunciam o racismo velado são os mesmo que estão conseguindo fazer com que classificações por fenótipos definam o destino de milhares de brasileiros ao tentar ingressar em uma instituição de ensino ou conseguir um emprego, implementando um sistema por natureza racista.


Tenho que agradecer à autora do comentário que li e que me apresentou esse termo “duplipensar”. Nunca antes havia percebido um termo que traduzisse tão bem o que ocorre com o (ou no) Brasil. Talvez já existam cursos para ensinar técnicas para duplipensar, tamanha é a naturalidade de nossos principais personagens políticos ou não com as negações positivadas e as afirmações negativadas. E, mesmo que pegos em contradição, eles ainda têm a saída maliciosa do “não sabia”. Como ouvi em alguma rádio, o Brasil é o único lugar onde o ladrão é pego com o dinheiro na cueca e ainda tem a coragem de dizer: roubei, mas não fui eu!

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