Estranhamente,
acordei no dia 16 de julho da mesma forma como acordara nas noites anteriores.
Ainda tinha duas pernas, dois braços, dois olhos e todo o resto do corpo
visível. Levantei-me e fui conferir no espelho e notei a mesma cara inchada e
amassada de todas as manhãs. A preguiça era a mesma e os bocejos tão frequentes
quanto antes. Não contente, despi-me de toda roupa para conferir se tudo
permanecia no lugar e no formato habitual. Nada havia mudado, nem para melhor e
nem para pior. Se não houve mudança física, então só poderia ter havido mudança
mental. Foi a hipótese que veio a minha cabeça.
Fui
tomar café pensando nas teorias de aprendizagem e suas derivações para o
conhecimento da memória de curto, médio e longo prazo. Fisicamente eu poderia
estar o mesmo, mas mentalmente eu já poderia demonstrar algum sinal de mudança,
como um Alzheimer, por exemplo. Entre um gole de café e uma mastigada num sanduíche, resolvi fazer um teste comigo mesmo. Quem descobriu o Brasil? Pedro
Álvares Cabral. Onde você nasceu? Campina Grande. Qual o nome da sua primeira
escola? O Pequeno Príncipe. Qual o nome da primeira rua onde você morou em
Salvador? Rua Professor Souza Brito. Qual o nome do chefe que você mais odiou?
Silvio. Qual o nome do chefe que você mais amou? Nádia. Onde você mora? Natal. Em
que dia sua filha nasceu? 26. O que é um citoplasma? Algo que tem a ver com
células, mas que eu não sei ao certo para que serve ou o que faz. Qual o
teorema de Pitágoras? O quadrado da hipotenusa é a soma do quadrado dos
catetos. Qual a placa de seu carro? Não sei. O que você comeu ontem no almoço? Teve peixe, mas o
resto não saberia descrever. Com essa última, concluí que estava tudo normal. De
fato, eu era eu mesmo. Inteirinho. Não havia mudado nada. Nem física e nem
mentalmente. Isso foi incrível.
Mas,
como pode isso? Não mudar nada?
Lembro-me
de quando eu era criança e minha mãe estava comemorando os 40 anos dela. Na
oportunidade, ela fez uma festa memorável. Foi a primeira e única festa daquele
porte que ela proporcionou. Muita gente e muita comida boa, feita por um chef
especialmente contratado para o evento. Coisa única mesmo, pois minha mãe
costuma assumir o controle da cozinha em tudo. Mas, o fato era que estava tudo
muito bom. Naquela noite eu a olhava admirado, contente por estar fazendo parte
daquilo tudo e, ao mesmo tempo, preocupado. Preocupado porque, no meu olhar
infantil, eu achava que minha mãe estava ficando muito velha. Quarenta anos
para mim era algo tão longe, tão inatingível e tão perigosamente assustador que
eu não me imaginava chegando a tal idade. Eu não sabia o que viria após os 40
anos. Como cenários sombrios dos personagens malvados dos desenhos animados que
eu assistia à época (Esqueleto de He-Man; Mun-Ha de Thundercats), não deveria
ser nada bom. Certamente eu não chegaria aos 40. Não só cheguei, como cheguei
rápido.
Indo
ao trabalho e desfrutando de um transito que ainda se pode filosofar ao dirigir,
duvidei da minha conclusão de que nada havia mudado. A comparação não pode ser
curta. Não se modifica de um dia para o outro, é um processo lento. A grandeza
da comparação deve ser do tamanho da idade, em décadas. Não se compara 40 com
39, mas sim com 30, com 20 ou com 10. Dessa forma sim, comecei a ver grandes
transformações. Dos 10 para os 20, além do crescimento físico, mudanças de
endereço e de personalidade. De um guri buchudo do interior, para um
universitário na capital baiana. Dos 20 para os 30, mudanças de status social, de
objetivos e de fisiologia. De um solteiro, duro e devorador inconsequente de
calorias, para um casado, endividado e iniciante da busca interminável do bom
condicionamento físico (incluindo o peso). Dos 30 para os 40, foi o período do
desenvolvimento cognitivo, estabilidade financeira e continuidade genética. Uma
filha, uma dissertação e uma tese foram os frutos desse período. Também um
período de maior prática esportiva e muitas mudanças geográficas e de emprego.
Pois
bem, terminei a minha reflexão filosófica sobre as mudanças, se eram perceptíveis
ou não, ao me deparar com o portão de entrada do meu trabalho. Nesse instante,
o vigia que me olhava ao passar o crachá e abrir a cancela para o
estacionamento me disse: tenha um bom dia de trabalho, senhor. Senhor. Está aí a
palavra, um substantivo que qualifica e expressa bem essa mudança. Senhor.
Senhor. Senhor.... Antes era moço ou rapaz. Agora é senhor.
Lembrei-me
que não deveria ir ao escritório e sim às salas de treinamento, pois deveria
participar de um treinamento para saúde, segurança e meio ambiente. Tratava-se
de um curso da norma NR-20, para locais onda há estoque de materiais inflamáveis.
Ao chegar à sala, deparei-me com uma turma de estagiários. Como havia me
transferido de outra unidade, eu era o único empregado que não havia recebido
esse treinamento. Além de mim, só os estagiários recém contratados estavam
fazendo o curso. Superado o nítido contraste que eu fazia naquela turma de 20
anos, deparei-me com outra evidência das mudanças que o ano provoca. Explicando
a necessidade de redundância na avaliação de riscos de qualquer ambiente ou
situação, o instrutor fez uma analogia um tanto quanto complicada para o meu
estado de espírito daquele dia.
Ele
explicou que, quando se trata de segurança, nunca se pode confiar em um único
indicador. Ele estava falando de alarmes de incêndio, detectores de fumaça,
indicadores de temperatura, mapeamento de riscos e outros mecanismos
necessários para garantir a saúde e segurança de todos. Para exemplificar que a
redundância é importante, meu colega instrutor lembrou a experiência dele com o
temível exame de próstata, quando completara 40 anos. Diante do médico, ele
apresentou o resultado dos exames laboratoriais e laudo apontando que sua saúde
estava excelente. Pensando que ia ser dispensado do exame de toque, ele foi
surpreendido com o médico apontando para uma maca e ordenando que ele retirasse
a roupa. Além de nunca ter esquecido das lições de redundância daquele médico e
de utilizá-las em suas aulas, ele acabou me alertando para a inevitável e não
mais adiável experiência que irei ter.
Fazer 40 é assim: querer manter a potência dos de 20 e o espírito dos de 30, mas já
apresentar a necessidade de manutenção dos de 50.
A conclusão disso tudo é que
as mudanças sempre existirão e que não adianta lutar contra elas. Pelo
contrário, deve-se tentar aproveitar ao máximo todas as suas fases e felicitar as
pessoas que estão ao seu lado. Sua família e seus amigos. Eles também estão
passando por isso e irão te ajudar a descobrir o sentido de sua vida.