Ela chegou ao consultório como se chegasse atrasada em uma
festa infantil, completamente por fora da situação. Situação, esta, nova e
inusitada para ela, completamente acostumada a mandar e a ser obedecida. Sempre
soberana, lá estava ela tentando se encontrar naquele ambiente à meia luz,
confortável e com uma música suave ao fundo.
- Pode se sentar. Sinta-se o
mais confortável possível. – falou o psicanalista, notando que sua
cliente apenas observava o ambiente, sem tomar qualquer atitude.
- Aqui? – perguntou a
cliente, um tanto quanto vacilante.
- Sim. Por favor! Se quiser
tirar os sapatos...
- Não! – negou prontamente a
gentil oferta. Tirar os sapatos para ela, uma mulher extremamente elegante e no
auge de sua carreira, para uma pessoa praticamente estranha, seria um
despautério.
- Tudo bem. Então, ao menos,
coloque sua bolsa sob a mesa de apoio. Assim você fica mais à vontade.
- Você sabe quem sou eu, não sabe?
– perguntou a cliente, sentando-se e estranhando a naturalidade do psicólogo
até aquele momento.
- O importante aqui não é eu
saber quem você é e sim você saber quem você é.
- Quem sou eu? Parece-me óbvio, não?
- Tem certeza?
- Você tem razão. – a cliente
parou para pensar um pouco. – Ultimamente nem eu sei
quem eu sou.
- Então, eu suponho que é esse o
seu motivo por estar aqui.
- Não! Claro que não. Bem...
talvez...
- O que traz você aqui, então?
- É que... estão querendo me
separar? – falou a cliente de maneira vacilante.
- Você é casada? Não vejo a
aliança...
- É como se fosse.
- Há quanto tempo? Digo... há
quanto tempo você é casada?
- Seis... quase sete anos.
- Com quem você se casou?
- Preferia não falar.
- Se você não quiser falar o
nome, tudo bem. Chame por um pseudônimo para termos uma referência.
- Vou chamar de P. P está bem?
- Sim... então, você vai se
separar de P?
- É o contrário. P é que está
querendo se separar de mim.
- Qual o motivo?
- Injúria! – a cliente
levantou o braço e o dedo ao proferir enfaticamente a palavra.
- Injúria?
- Sim... difamam-me o tempo todo e P
acredita nisso.
- Por que a difamam?
- Parece óbvio, não?
- Nada é óbvio.
- Então vou deixar bem óbvio: M quer
ficar com P.
- M?
- Sim. Essa pessoa está por trás de
tudo.
- Então tem outra nessa relação?
- Toda relação tem outra pessoa
atrapalhando, não é doutor?
- Não importam as outras
relações, apenas a sua. Fale-me mais sobre P.
- P é um ingênuo. Não está
acostumado com o mundo. Ele ganhou a liberdade, mas não sabe decidir o que quer
e todos conseguem o influenciar... agora ele quer ir embora. – falou a
cliente, um pouco melancólica.
- E por que você não deixa ele
ir embora?
- Está louco? M ficaria com P. M não
presta.
- Você presta?
- Não entendi. – a cliente
fez uma expressão de poucos amigos.
- Você disse que M não presta.
Mas, P está indo para M. Então, você presta?
- Claro que presto!
- Então, por que P está indo
embora?
- Já falei. P é ingênuo, não sabe o
que faz.
- E você? Você sabe o que faz?
- Claro! Uma mulher como eu, no
posto que ocupo, na importância que tenho... sempre soube o que fazia... sempre
sei o que faço.
- Vou mudar a pergunta. Por que
você quer que P fique?
- Não entendi! – a cliente
fez uma expressão de paisagem.
- Você é uma pessoa muito
importante e assertiva, não é?
- Sim, obviamente! Melhor:
aparentemente, sim. – corrigiu-se a cliente.
- Por que uma pessoa, com seu
status, manteria um relacionamento com outra, ingênua e que não sabe discernir bem
as coisas? Como o P.
-
É que... – a cliente interrompeu a fala para pensar.
- Sim? – instigou o
psicólogo, vendo que a cliente havia parado em suas próprias razões.
- É que... de uns tempos para cá...
como posso dizer? – vacilou a cliente.
- Apenas diga.
- De uns tempos para cá... eu não
sei mais viver sem o P. Pronto! Disse.
- E, por que você não pode viver
mais sem o P?
- Você não vai querer saber...
- Podemos ficar calados, um
olhando para o outro. Mas, isso não vai te ajudar.
- Está certo. Vamos lá... tenho que
admitir que sem o P eu não seria o que sou.
- Então, você é precisa do P, mas
o P não precisa de você?
- Por que você pergunta isso?
- Ora, P está te deixando e você
não quer que ele vá.
- Sim, sim... não posso mais viver
sem o P. – a cliente começou a chorar.
- Tenha calma! Tome um copo
d’água. – o psicólogo ofereceu um pouco de água mineral, a qual a
cliente bebeu alguns goles.
- Desculpe-me. Estou uma pilha com
isso tudo. Aquele M cretino! Ele é quem fez a cabeça de P contra mim.
- Você culpa apenas ao M?
- Não! Claro que não! Tem o A e a
fofoqueira da G. Ninguém presta!
- A, G...
- A, G, E, F...
- São muitos assim contra você?
- Tem muito mais, não saberia
numerar.
- Alguém a seu favor?
- Tem o L.
- Esse presta?
- Também não! É o pior deles.
- Agora sou em que não entendi.
- Ele é meu amigo, mas também quer
ficar com o P.
- Que relação estranha!
- Estranha mesmo. – a cliente
se serviu de mais água.
- Você culpa a todos... mas, que
culpa tem você?
- Eu?
- Sim. Não é para isso que você
veio aqui?
- Eu quero que você me ajude a não
me separar de P.
- Isso eu não posso fazer.
Apesar de P ser ingênuo, como você diz, ele tem capacidade de tomar as suas
decisões.
- Então, para que servem
profissionais como você?
- Para ajudar a você se conhecer
melhor.
- Isso eu não quero saber. De que me
serviria isso?
- Talvez você descobrisse que
não precisa tanto do P quanto imagina...
- Doutor, acho que você não está
entendendo nada.
- Não?
- Não! É melhor você apagar de seus
registros a minha passagem por aqui... você sabe... depois a G descobre e vai
espalhar para todo mundo que eu estou ficando louca.
- Posso fazer mais alguma coisa
por você? – perguntou o psicólogo vendo a cliente sair.
- O senhor pode me receitar algum
remédio para dormir? Não durmo há dias.
- Não sou psiquiatra.
- Ah... nem isso! E ainda queriam
que eu permitisse trabalhar por apenas seis horas. – a cliente bateu a
porta do consultório, deixando para trás o psicólogo coçando a cabeça.