sexta-feira, 27 de março de 2009

Compromisso

Nessa vida, a época que menos bebi foi, paradoxalmente, quando trabalhava numa grande cervejaria brasileira – da qual não revelarei o nome. Apesar de receber caixas e mais caixas de cervejas, em todos os dias comemorativos (dia dos pais, das mães, das crianças, da consciência negra etc.), faltava-me o principal: tempo. O trabalho só não era escravo pelo fato da ilusão de que algum dia conseguiria abaixar aquele estoque doméstico de cerveja.

Foi num dos raros momentos de descontração que notei a força dessa organização, seus mitos e suas regras ocultas. Estava eu e um amigo num bar novo da cidade, no qual não havia a marca de cerveja que produzíamos. Despreocupadamente, pedimos e tomamos cerveja de outra marca. Acontece que, no mesmo bar, estavam outros funcionários da cervejaria. No outro dia, nossas cabeças estavam a prêmio por termos saboreado a concorrência. Com muita habilidade, nosso chefe nos livrou de uma demissão. Não estava escrito em lugar algum, mas todos sabiam que não era permitido consumir o produto concorrente.

Quando fui trabalhar com educação pública (1999 a 2003) levei gravado em minha memória esse conceito. Na educação pública, principalmente a básica, é justamente o contrário. O funcionário público que matricula seu filho/a numa escola pública só o faz porque está muito ruim da grana. O professor de uma escola pública, se puder, matricula seu filho em uma escola privada.

Logicamente fiquei indignado com essa situação. Na minha lógica fabril quem fabrica Coca-Cola bebe Coca-Cola, não PEPSI. Quem fabrica FORD compra FORD, não FIAT. Quem trabalha no Banco do Brasil tem conta no Banco do Brasil, não no Bradesco. Essa lógica se baseia em dois argumentos fundamentais: 1º) se você mesmo não consome o que faz, quem consumirá? E, 2º) se você consome do concorrente, ele o derrubará e você perderá seu emprego.

Sendo assim: por que quem faz a educação pública não matricula seu filho na escola pública?

Levando à risca essa lógica, defendi que, enquanto estivesse trabalhando com escolas públicas e quando tivesse um filho/a, o/a matricularia na escola pública. Fui xingado e ridicularizado pelos meus parceiros de trabalho. “Você é um idiota”, foi o mínimo que ouvi. Também defendia que o/a secretário/a de educação deveria também matricular seu filho na escola pública, assim como seus assessores, diretores, aspones etc. Mais uma vez: quem faz Coca-Cola deve tomar Coca-Cola.

Deixei de trabalhar em escolas públicas, o tempo passou, as pessoas passaram e esse assunto adormeceu. Entretanto, recentemente descobri um projeto de lei do Senador Cristovam Buarque com objetivos parecidos com as minhas proposições para a educação. Esse projeto determina a obrigatoriedade de os agentes públicos eleitos matricularem seus filhos e demais dependentes em escolas públicas até 2014.

Vejam os argumentos do Senador:

“No Brasil, os filhos dos dirigentes políticos estudam a educação básica em escolas privadas. Isto mostra, em primeiro lugar, a má qualidade da escola pública brasileira, e, em segundo lugar, o descaso dos dirigentes para com o ensino público.

Talvez não haja maior prova do desapreço para com a educação das crianças do povo, do que ter os filhos dos dirigentes brasileiros, salvo raras exceções, estudando em escolas privadas. Esta é uma forma de corrupção discreta da elite dirigente que, ao invés de resolver os problemas nacionais, busca proteger-se contra as tragédias do povo, criando privilégios.

Além de deixarem as escolas públicas abandonadas, ao se ampararem nas escolas privadas, as autoridades brasileiras criaram a possibilidade de se beneficiarem de descontos no Imposto de Renda para financiar os custos da educação privada de seus filhos.

Pode-se estimar que os 64.810 ocupantes de cargos eleitorais – vereadores, prefeitos e vice-prefeitos, deputados estaduais, federais, senadores e seus suplentes, governadores e vice-governadores, Presidente e Vice-Presidente da República – deduzam um valor total de mais de 150 milhões de reais nas suas respectivas declarações de imposto de renda, com o fim de financiar a escola privada de seus filhos alcançando a dedução de R$ 2.373,84 inclusive no exterior.

Considerando apenas um dependente por ocupante de cargo eleitoras.

O presente Projeto de Lei permitirá que se alcance, entre outros, os seguintes objetivos:

a) ético: comprometerá o representante do povo com a escola que atende ao povo;

b) político: certamente provocará um maior interesse das autoridades para com a educação pública com a conseqüente melhoria da qualidade dessas escolas.

c) financeiro: evitará a “evasão legal” de mais de 12 milhões de reais por mês, o que aumentaria a disponibilidade de recursos fiscais à disposição do setor público, inclusive para a educação;

d) estratégica: os governantes sentirão diretamente a urgência de, em sete anos, desenvolver a qualidade da educação pública no Brasil.

Se esta proposta tivesse sido adotada no momento da Proclamação da República, como um gesto republicano, a realidade social brasileira seria hoje completamente diferente. Entretanto, a tradição de 118 anos de uma República que separa as massas e a elite, uma sem direitos e a outra com privilégios, não permite a implementação imediata desta decisão.

Ficou escolhido por isto o ano de 2014, quando a República estará completando 125 anos de sua proclamação. É um prazo muito longo desde 1889, mas suficiente para que as escolas públicas brasileiras tenham a qualidade que a elite dirigente exige para a escola de seus filhos.

Seria injustificado, depois de tanto tempo, que o Brasil ainda tivesse duas educações – uma para os filhos de seus dirigentes e outra para os filhos do povo –, como nos mais antigos sistemas monárquicos, onde a educação era reservada para os nobres.”


Hoje, muito mais cético, vejo que o Senador é um tanto quanto utópico. Aliás, sempre o foi. Enquanto senador, Cristovam está cumprindo o seu dever de propor. Mas, acredito que neste país é mais fácil ver o presidente da Coca-Cola Brasil, Brian Smith, tomando volumosos goles de PEPSI, que ver o ministro da educação, Fernando Haddad, pegando seu filho na escola pública (se é que ele tem filho).

Quem quiser acompanhar o trâmite do projeto do Senador Buarque é só clicar: http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82166

6 comentários:

Alice Senna disse...

Arturo já lhe disse que sou sua fã de carteirinha, na maioria das vezes? rs. Excelente tópico! Disse tudo, não sobra mais nada para ser dito. Sabemos que hj estudam em escolas públicas os filhos da parcela da população que não pode sonhar em pagar as mensalidades das particulares, que tb não têm suas mazelas, e aqueles filhos de pais que um dia puderam pagar as privadas e hj não podem mais. Conheço familias e famílias que se viram obrigadas a matricular seus filhos em rede pública porque compõem hj uma classe desprevilegiada. Vim de escola pública numa época que o melhor ensino estava lá. Era uma disicplina rigida... lá aprendi a cantar o hino brasileiro todos os dias, lá aprendi que o pobre é meu irmão, lá aprendi a ler e escrever. Um beijo para você!

Jorge Amaral disse...

"O presente pertence aos pragmáticos. O futuro é dos utopistas"! A utopia serve, portanto, como um instrumento de transformação social, que visa, "desmascarar a falsidade da ideologia estabelecida”. (Herkenhoff, 2008)
O Senador Buarque ressalta que “... Se o Educacionismo é uma utopia para as próximas décadas, é também a base para a utopia final que consiste em formar uma imensa rede... uma sociedade integrada culturalmente, por pessoas com a mesma base educacional...”. (O que é o Educacionismo. São Paulo: Brasiliense, 2008)
Que a utopia nos abra a porta da autoconsciência!

Unknown disse...

Excelente post.
Nunca havia pensado dessa forma, não
podendo deixar de lembrar que acontece o mesmo com saúde brasileira. Ou o senhor acha que um médico nao tem carteira de assitência médica, e seus filhos vão
aos Sus?
:D

Unknown disse...

Sou sua Aluna no Senai :D

Arturo Cavalcanti Catunda disse...

É a mesma lógia Andressa. Também podemos pensar para a Segurança Pública, onde temos que pagar empresas de segurança para tomar conta de nossas casas, condomínios e lojas.

Unknown disse...

Ótimo post, Arturo. Sou protagonista de um tempo em que a escola pública era escolhida pelas famílias que desejavam a melhor formação para os seus filhos. Estudar em escola particular era sinônimo de "pagou passou" e nela só estudavam os alunos medíocre. Isso aconteceu a cerca de 39 anos, tempo suficiente para que o Estado Brasileiro detonasse a escola pública. Quanto à proposta de Cristóvão Buarque, realmente ela é utópica mas importante ser afirmada, no mínimo, cria fórum para falar da precária situação atual do ensino público

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