sábado, 16 de janeiro de 2010

O paradoxo do serviço

Reza a lenda que um bom serviço envolve algumas dimensões, tais como: confiabilidade no atendimento; responsabilidade e compromisso com a entrega do resultado; segurança do processo, dos dados e das pessoas; adequação e qualidade das instalações físicas e dos equipamentos; boa aparência e empatia dos atendentes. Todas essas dimensões, nós podemos observar diariamente nos serviços prestados à população.

Capitaneada pela angústia e pela fúria de perder cinco dias, entre telefonemas e filas de espera, tentando solucionar um aparente problema de bloqueio de cartão de crédito de uma rede de lojas de eletrodomésticos, Cleudenice, uma senhora de cinqüenta e tantos anos, mãe de três filhos e avó de dois pirralhos, aos prantos, desabafa:

- Minha filha, essa é a décima vez que eu digo a vocês: eu paguei essa conta! Veja aqui o recibo do banco.

Cleudenice mostra o recibo do caixa do banco à atendente. Esta, uma jovem de uns vinte e poucos anos, bonita, sem filhos, com ensino superior incompleto e estudante de cursinho para concursos, pacientemente, responde:

- Eu sei Senhora. A Senhora já me mostrou. O problema é que a Senhora só poderá utilizar novamente seu cartão quando o nosso sistema reconhecer o pagamento.

- Não acredito nisso! Retruca Cleudenice. Com quantas pessoas vou ter que falar para provar que já paguei a conta? Cleudenice toma fôlego e continua:

- Olha, minha filha: eu já fui ao setor de crediário. Depois fui ao setor de pagamentos atrasados, que me mandaram falar com o gerente “sei-lá-das-quantas”. Ele me disse que era uma questão do departamento financeiro. Fui ao departamento financeiro e falei com um tal Valderli, que me disse que se tratava de inadimplência e que só se resolveria com uma empresa de recuperação de crédito. Pois bem, fui a tal empresa e falei com Silvânia, que me passou para Marisvalda. Marisvalda teve que sair para o almoço e me transferiu para você.

Cleudenice tomou outro fôlego e prosseguiu:

- Só com você, minha filha, eu já estou a mais de meia hora e você ainda não vai resolver o problema que vocês criaram para mim. O que vocês estão fazendo comigo é desumano!

- Não se trata disso senhora. Falou a atendente, com uma voz de filhinha falando para a mamãe.

- Então, se trata de quê minha filha?

- É que nosso sistema tem que reconhecer o pagamento para liberar o serviço para a Senhora.

- Mas, tem mais de 15 dias que eu paguei a conta. Aliás, paguei na data correta! Veja.

Cleudenice tenta mostrar novamente o comprovante de pagamento, quando a atendente repete:

- Não adianta Senhora, só após o sistema acusar o pagamento que liberaremos o seu cartão.

- Olha, minha filha. O dinheiro saiu da minha conta e foi para a de vocês. Não foi?

- Não adianta Senhora, só pós o sistema acusar.

- Isso é um absurdo! Quem vai acusar vocês sou eu! Cleudenice grita, perdendo a paciência e chamando a atenção das outras pessoas que estão sendo atendidas e na fila de espera.

A atendente se assusta com a reação de Cleudenice e chama o gerente de atendimento. O gerente – um rapaz alvo, de braços finos e um bucho saliente – chega ao local e, depois de escutar tudo de novo de Cleudenice, conclui:

- Infelizmente, a Senhora terá que voltar aqui amanhã para regularizar sua situação. Pode ser que, daqui prá lá, na virada de um dia para outro, o sistema atualize seus dados e resolva o problema. Sem isso, não podemos fazer nada pela Senhora. Só aguardar.

Cleudenice, exausta e derrotada, sai da sala de atendimento com seu recibo na mão. O gerente, com olhar galanteador, mira a atendente e comenta:

- Tá vendo como acalmar o cliente e evitar tumulto?

A atendente, sabendo bem o joguinho do setor de atendimento, lançando um charme ao gerente, responde baixinho, só para ele escutar:

- Por isso que você é meu ídolo. Você é foda! Agora vou indo, que meu horário já passou e muito.

Na saída do prédio, a atendente encontra o namorado - um rapaz moreno, forte e tatuado - e sua moto. Sobe na garupa, coloca o capacete e comenta:

- Que dia de merda! Uma coroa me ficou chateando o tempo todo por causa de um pagamento que fez e que não está sendo reconhecido. Deu um escândalo lá na frente de todo mundo. E eu ainda tive que ficar ouvindo as babaquices daquele gerente bundão. Aliás, cadê o seu carro?

- Ainda tá na revisão.

- Putz! O serviço daqueles caras tá cada vez pior. Não sei por que você ainda insiste neles?

Um comentário:

Jorge Amaral disse...

Como dizia Raul Seixas: “Pare o mundo que eu quero descer...”. Caro amigo, triste época essa que vivemos na "sociedade do espetáculo"...

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