domingo, 14 de dezembro de 2008

Pai

Se alguém te pedisse para escrever sobre teu pai, de uma penada só o que você escreveria? Bem... Não muito precisa, aumentando e diminuindo em alguns pontos, segue a minha versão:
Lembro-me bem do enterro do meu pai. Fui chamado às pressas e peguei o primeiro vôo de Salvador para Fortaleza. Era o dia da final da Copa do Mundo. Jogamos as últimas pás de terra enquanto a Seleção Brasileira perdia para a França. Infeliz coincidência! Todos estavam tristes e as ruas bem desertas. O céu estava mais cinza do que o normal e o cemitério se estendeu ao país inteiro.
Dois anos separaram o seu nascimento do final da Segunda Guerra Mundial. Particularmente não viu nenhuma granada ou bala perdida na pequena e pacata Deurne, mas sofreu os reflexos de uma Holanda que estava bem destruída. Hitler não quis conversa, foi retirado à força e deixou profundos estragos. Sua família era agricultora, plantavam batata e tinham algumas vaquinhas com tetas enormes.
Não tive oportunidade de aprender muita coisa com meu pai. Ele saiu de casa quando eu era muito pequeno. Acho que geneticamente tenho alguns traços de personalidade, lógica e organização. Nada comparado ao meu irmão, mas, alguns traços, eu tenho sim. Meu pai gostava muito de futebol, torcia pelo Treze e tinha uma cachorra chamada Trezina. Isso eu peguei dele. Só não aprendei a escolher o time certo. Gostaria de ter absorvido seu jeito de lidar com as pessoas. Não deu tempo.
Foi o filho estudioso e recebeu apoio da família, não tendo que enfrentar, no rigoroso inverno, as tarefas de uma via rural. As aspirações de sua mãe eram para que se tornasse padre. Não deu, continuou estudando e entrou na faculdade. Mas, a vida não era só estudo, não. Participou de algumas festinhas, viu os Rolling Stones quebrando todas as cadeiras do teatro e, pela proximidade de Amsterdam, acho que curtiu bastante.
Meu pai era muito sociável e talvez por isso tenha se desviado na vida. Tudo ganhou, tudo conquistou e tudo perdeu. A companhia dos amigos, em princípio. A companhia da cachaça, por fim. Na minha família todo mundo bebe, mas só meu pai não foi bamba. Não soube parar. Perdeu emprego, casa, mulher, amigo, filhos e tudo ao seu redor. Terminou aposentado, pendurando conta de bar em bar. Para ele a vida foi cíclica: voltou para onde veio.
Já formado, teve uma opção que mudaria completamente o sentido de sua vida. Ou ia servir o exército ou ia ajudar algum país do terceiros mundo. Muito corajoso, quis ajudar o Brasil. Chegou aqui em São Paulo. O primeiro carro que pegou foi um Landau, com ar-condicionado. O primeiro bairro que visitou foi Morumbi. A primeira propaganda que viu foi da TV Colorida da Philips. A primeira pergunta que fez foi: eu vim ajudar quem, mesmo? Mais tarde, foi para Paraíba.
Foi o professor de minha mãe e de uma porrada de alunos. Teve um de seus alunos que quis desafiá-lo. O aluno era esperto e viu que uma de suas fórmulas estava com erro e não teve dúvida em denunciá-la. Assumindo o erro, meu pai preparou a vingança com bastante açúcar. Na aula seguinte, colocou propositalmente um erro em outra fórmula, só que dessa vez o aluno não percebeu. Indagado se estava certa a fórmula, o aluno confirmou que sim e caiu em sua própria arapuca. Neste instante, minha mãe se apaixonou por ele. Que lógica! Que organização do pensamento!
A dedicação dele era para o estudo e depois para a pesquisa. Iniciou-se como professor na disciplina de química na Universidade Federal da Paraíba, em Campina Grande. A sua primeira turma foi toda reprovada. Sua foto saiu no jornal local com a seguinte chamada: holandês reprova mais de cem. Depois, entendeu que se deve fazer com aluno o que o morcego faz com o boi: morder e assoprar. Fez mestrado, doutorado, pós-doutorado. Foi para a África do Sul para ser orientando do papa da engenharia sanitária. Voltou ao Brasil e se estabeleceu de vez como professor e pesquisador, obtendo bastante destaque no cenário nacional e internacional.
No início, a vida o desafiou e ele respondeu de volta, progredindo nela. Casou, formou família, teve – que eu saiba – três filhos. Construiu casa, criou cachorro, gato e papagaio. Cresceu profissionalmente, chegando a ser diretor. É! Diretor. Foi responsável por boa parte da eletrificação rural da Paraíba. Saía e, quando voltava, vinha com bode, galinha, porco. Eram presentes dos agricultores pela energia que chegava. Um desses bodes, Mustafá, ficou sendo criado lá em casa. Um belo dia, meu irmão saboreado o almoço dominical, perguntou o que era. Pergunta errada! Era o Mustafá. Chorando, meu irmão soluçou e disse: muito bom.
Minha mãe trabalhava no mesmo departamento dele, talvez por isso, pela convivência se apaixonara. Tiveram que enfrentar muita gente por causa disso. A família ficou toda contra. Lá e cá. Mas, no fim, tudo acaba se acomodando e as idéias que eram suspeitas o tempo trata de desmistificá-las.
Passou de primeira em engenharia elétrica na recém inaugurada e concorrida Universidade Federal da Bahia, em Campina Grande. Para se manter, teve que dar aulas enquanto estudava. Progrediu muito bem. Depois de formado, foi trabalhar na Companhia Elétrica da BorboremaCELB.
Meu pai é muito sociável, apesar de ter apenas um amigo em particular, muito íntimo, também holandês, por onde passa deixa laços e amizades. É referendado por um batalhão de ex-aluno, apesar dos zeros iniciais. Aposentado da Universidade, ele viaja o ano todo prestando consultoria, pingando aqui e ali, fazendo contatos e projetos. Recentemente, a contragosto de minha mãe, aportou por aqui.
Foi o filho estudioso da família e recebeu apoio para isto. Até de um tio que ofereceu a bodega dele com base para continuar os estudos em Fortaleza. De dia trabalhava. De noite estudava. De madrugada dormia por trás do balcão da bodega. Não me falou sobre festas. Mas, acho que, pelo seu perfil, a bodega sofreu algumas perdas na seção de bebidas.
Aprendi muitas coisas com ele. Uma das primeiras foi como comer corretamente. Aquelas coisas do garfo na esquerda e a faca na direita. Acho que isso ele trouxe como trauma de criança e quis passar adiante. Meu irmão até hoje não acerta. Outras coisas formam mais nobres, como seguir objetivos, ser honesto, respeitar as outras pessoas e confiar na família. Recordo-me de que sempre que precisei, tive o seu apoio. Uma dessas vezes foi quando eu não concordei com o meu primeiro chefe e ele me disse: se você não confia no seu chefe caia fora. Cai fora.
Nasceu numa cidadezinha do interior do Ceará, chamada Hidrolândia. Mais que otimismo, foi realidade. A cidade chamava-se Cajazeiras do Timbó até que encontraram uma fonte de águas sulfurosas, mudando de nome. Apesar das romarias de pessoas em busca dos milagres das águas, a cidade ficou presa no seu passado e nunca evoluiu.Hoje posso considerá-lo como um viciado por trabalho. Mesmo aposentado, trabalha para uma empresa do Pólo de Camaçari, dá consultoria mundo afora, publica livro, orienta tese e se mete em mil projetos de vez. Só fico pensando quando é que ele vai parar para curtir mais a vida. Conhecer novos lugares, comidas, bebidas, músicas etc. Agora, além da mulher, ele tem netas e pode passear por lugares que antes não podia. Bem... Esse é o jeito dele.

2 comentários:

Jorge Amaral disse...

Arturo,
Essa suas memórias gravadas no “DNA Catunda” me fizeram lembrar de uma belíssima composição de Belchior imortalizada na voz de Elis Regina que diz: “... Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo que fizemos; ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos - como nossos pais...”
Amigo, o nosso pensar é lúcido e a nossa emoção é lúcida também.

Unknown disse...

Ei, só assim para eu saber algumas coisas, hein? Entre elas, que você continua escrevendo bem!
Yed

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